quinta-feira, 30 de julho de 2009

Rabiscos sinceros


Encontro um velho caderno e rabisco um fino traço que inicia o contorno de um desenho. Um traço leve e delicado, que delineia um olhar perdido no infinito, com um sorriso gostoso que transborda uma alegria singela e estranhamente infantil. E mesmo que o papel não mostre, os olhos brilham o brilho de uma estrela cadente - daquele jeitinho assim deslumbrado e incontido. Como uma criança que vê em suas mãos um tesouro que tanto esperava - ou o idoso que revê o sorriso carinhoso de uma criança que um dia já foi sua. Os lábios delineiam um sorriso que se abre sem fim, sem hora pra vencer, sem data para se extinguir, congelado no tempo e no espaço de um caderno cujas folhas amareladas um dia já abrigaram os segredos infinitesimais de uma conta de matemática ou de uma velha aula de ciências.

Assim, tão simples, esse breve rabisco feito por mãos bem pouco hábeis com um desgastado lápis preto ganhou forma mais na imaginação do que no papel. E o conjunto desregrado parece gerar uma alegria marota insistente, crivada de inocência e do doce não-saber de quem vive no mundo da lua. Ai, como é bom viver no mundo da lua às vezes.

domingo, 26 de julho de 2009

Retrato em preto e branco


Se fosse cuidadosamente fazer uma fotografia neste momento, ela seria em preto e branco. E, mesmo que fosse de um sujeito qualquer, mostraria as rugas do meu rosto e da minha alma. Revelaria as minhas linhas de expressão, os sorrisos já desfeitos, os risos já sem eco ou som, as lágrimas secas que um dia passaram pela minha pele e morreram no contorno dos lábios. Encerraria em si mesma o choro e a reza, a desilusão e a esperança, a força dos anos que aos poucos embranquecem meus cabelos e desfiam as linhas secas de minhas mãos.

Mesmo que a imagem não fosse do meu rosto, ainda assim revelaria um peso estranho, daquele tipo que se sente e não se explica; que estrangula e rasga o peito, revelando contornos fugazes, sombrios, confusos e esparsos. Sem cores, sem manchas, sem desvios. Clara e crua. Escura e cruel.

Se fosse fazer uma fotografia neste momento, ela seria densa, mesmo que refletisse a leveza de um espírito. Estaria carregada de solidão e de tristeza, ainda que acompanhada de pitadas de doces alegrias e saudosas recordações. Um momento congelado, teimoso na ânsia de não ser deixado para trás. Ponto a ponto, detalhe a detalhe, teria uma imagem aprisionada em um tempo que não volta mais, que não admite reconstrução ou perdão, que foi abandonada como uma linha perdida em uma teia imensa.

Se fosse fazer uma fotografia neste instante, o preto e o branco aos poucos fundir-se-iam, construindo pequenas nuances de uma tristeza cinza.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Um espelho em um dia ensolarado

O reflexo me persegue no canto da cama; um rastro de sol me lembrando que o dia aqueceu a cidade e aconchegou a frieza noturna. Aqui dentro, a mesma coberta de ontem, o mesmo par de meias, as luvas brancas a aquecer as mãos. Na TV, um pouco mais do mesmo. Os ponteiros percorrem o velho relógio de parede, bem devagar, quase como se estivessem saboreando um delicioso petit gateau. Ainda assim, o fato de estar só não me assusta. Nem me entedia.